domingo, 23 de outubro de 2011

Uma generalização do teste das raízes racionais

As considerações desta postagem surgiram ainda quando eu era aluno do curso de mestrado em matemática da UFC. Juntamente com o meu colega de turma Antonio Caminha e o professor Manoel Azevedo analisávamos um problema proposto na XVII Olimpíada Brasileira de Matemática de 2° Grau (1995). Neste, pedia-se para provar que um dado polinômio de coeficientes inteiros não possuía raízes da forma  em que r é um número racional. A solução que obtivemos para esse problema fornece uma  curiosa generalização para o teste das raízes racionais para polinômios de coeficientes inteiros.


Dizemos que um número real  é radical racional se   para algum par  .


Problema. Mostrar que o polinômio
não possui um radical racional como raiz.


A nossa solução para esse problema se baseia no seguinte resultado


Teorema AO polinômio minimal de um radical racional é um binômio.


Quando um número real x é raiz de um polinômio com coeficientes racionais  existe um único polinômio irredutível , no anel dos polinômios de coeficientes racionais, e mônico (i.e. com coeficiente líder 1) que se anula nesse número x. Tal polinômio é chamado de polinômio minimal de x. Além disso, dizemos que o grau desse polinômio minimal é o  grau  de x sobre os racionais.


Solução do Problema.
O polinômio  é mônico e, pelo Critério de Irredutibilidade de Eisenstein,  é irredutível no anel dos polinômios com coeficientes racionais. Como  não é um binômio, pelo Teorema A, ele não pode se anular em um radical racional.
Final da solução




Neste parágrafo, demonstramos como utilizar o Teorema A  para receber uma generalização do teste das raízes racionais para polinômios de coeficientes inteiros. Antes disso, vale a pena relembrar o teste das raízes racionais.


Teste das raízes racionais. Seja  polinômio com coeficientes inteiros. Então as raízes racionais desse polinômio estão contidas no seguinte conjunto de teste

Vejamos como utilizar o teste acima para mostra que o polinômio



não possui raízes racionais. De fato, como os divisores de 1 (coeficiente líder do polinômio) são 1,-1 e os divisores de 2 (termo independente do polinômio) são 1,-1,2,-2 o conjunto de teste do polinômio acima é {1,-1,2,-2}. Como o polinômio acima não se anula no conjunto de teste, concluímos que ele não possui raízes racionais.


Uma vez relembrado o teste das raízes racionais, deixe-nos apresentar o que aqui chamamos de teste das raízes radicais racionais.


Teste das raízes radicais racionais. Seja  polinômio com coeficientes inteiros. Então as raízes radicais racionais de  de grau m estão contidas no conjunto de teste


a se  ou


b caso contrario.



Prova. Seja   uma raiz do polinômio  que é um radical racional. Escrevemos
z é um inteiro e  são polinômios irredutíveis no anel dos polinômios de coeficientes inteiros e, portanto,  também são irredutíveis no anel dos polinômios de coeficientes racionais. Temos que  é raiz de algum polinômio  e, pelo Teorema A, segue que  é um binômio, digamos . Para obter as relações em a. e b. acima, basta observar que  divide  no anel dos polinômios de coeficientes inteiros.


Final da prova do teste das raízes radicais racionais


Finalmente, apresentamos abaixo um roteiro de demonstração  do Teorema A.


Dizemos que um para  é  simples se  para todo inteiro positivo k  tal que .


1. Para cada radical racional  existe um par  simples tal que .


2. Se  é simples, então  sempre que o inteiro positivo k  for menor do que m.


3. Se  é simples, então o polinômio  é irredutível no anel dos polinômios de coeficientes racionais.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Curvas de Jordan no Toro II

Como prometido, nesta postagem apresentamos uma solução do seguinte problema. 


Problema. Encontrar um algoritmo tal que ao traçar uma curva de Jordan sobre a superfície do toro seja possível decidir se a curva demarca dois territórios sobre o toro.


A solução abaixo exige um pouco de familiaridade com topologia.


Solução.  Fixamos um paralelo (em verde na figura abaixo) e um meridiano g (em azul na figura abaixo) com orientações definidas na figura.




Seja J uma curva de Jordan no toro com sentido de percurso definido.


Para cada ponto P no cruzamento da curva de Jordan J (em vermelho abaixo) com o paralelo f , definimos um número i(J,f,P) da seguinte forma:


i(J,f,P)=1 se o cruzamento ocorrer da seguinte forma

i(J, f, P) = -1 se o cruzamento ocorrer da seguinte forma

Consideramos o número inteiro m(f,J) definido como a soma de todos os números i(J,f,P) variando P nos pontos de cruzamento de J com f.


Analogamente, para cada ponto Q no cruzamento da curva de Jordan J com o meridiano g definimos o número  i(J,g,Q) e, também, definimos o número inteiro m(g,J) como a soma de todos os números i(J,g,Q) variando Q nos pontos de cruzamento de J com g.


Finalmente, temos que J divide o toro em dois territórios se, e somente se, os números inteiros m(f,J) e m(g,J) são iguais a zero.

Final da solução.




A partir daqui, mostramos porque o algoritmo acima funciona! A solução que apresentamos acima está fundamentada nos seguintes resultados.


Primeiro Resultado. Uma curva de Jordan demarca dois territórios no toro se, e somente se, ela pode ser continuamente deformada em um ponto sobre o toro.

Esse primeiro resultado não é trivial. No final da postagem segue uma ideia de sua prova.

Segundo Resultado. O grupo fundamental do toro é isomorfo ao grupo abeliano livre gerado por dois elementos.

De fato, do Segundo Resultado precisamos utilizar algo da construção do isomorfismo entre o grupo fundamental do toro, doravante denominado grupo G, e o grupo abeliano livre com dois geradores. Os meridianos e os paralelos definem os dois geradores do grupo G e os caminhos que podem ser deformados em J, vistos como elementos do grupo G, se escrevem de forma única como


m(f,J) f + m(g,J) g  

Desde que as curvas que podem ser deformadas em um ponto definem o elemento neutro do grupo G, concluímos que a curva de Jordan J pode ser deformada em um ponto se, e somente se, m(f, J) e m(g, J) são iguais a zero e, recorrendo ao Primeiro Resultado, concluímos que a curva de Jordan J demarca dois territórios sobre o toro se, e somente se, m(f, J) e m(g, J) são iguais a zero.


Para finalizar a postagem, apresentamos abaixo uma ideia da prova do Primeiro Resultado.  


Seja J uma curva de Jordan no toro.


Afirmação 1. 
 J se deforma em um ponto se, e só se, J é fronteira de um disco no toro

No caso em que J se deforma em um ponto, de acordo com o Teorema de Monodromia, o seu levantamento para o recobrimento universal do toro (no caso o plano) é uma curva de Jordan também e, pelo Teorema Clássico da Curva de Jordan, tal levantamento divide o plano em dois territórios e um desses territórios D é um disco topológico que tem o levantamento de J como fronteira. Com um pouco de esforço, mostra-se que a restrição do recobrimento a D é um homeomorfismo sobre a sua imagem e, portanto, J é fronteira de um disco topológico no toro. A recíproca é clara.

Afirmação 2. 
J é fronteira de um disco, se e só se, J demarca territórios no toro.

Suponhamos que J divide o toro em dois territórios A e B. Sejam A' a reunião de A com J e  B' a reunião de B com J. Abaixo temos figuras que dão uma ideia do que sejam A' e B'. 

Se, após o corte do toro ao longo da curva J, obtemos as figuras como as que estão imediatamente acima, temos que J é fronteira do disco topológico B. Demonstremos agora que devemos ter exatamente as figuras acima, após o corte do toro ao longo da curva J. De fato, se colamos um disco a A' (respectivamente B') colando a fronteira do disco à curva J obtemos duas superfícies fechadas no espaço cuja soma conexa é exatamente o toro. Pela classificação das superfícies fechadas, temos que umas delas é um toro e a outra é uma esfera, pois essa é a única possibilidade de se obter um toro como soma conexa de duas superfícies fechadas. Sem perda de generalidade, podemos supor que a esfera foi obtida de B' por colagem de um disco ao longo de J. Portanto, B' é exatamente como na figura acima.

A recíproca não oferece resistência.

sábado, 15 de outubro de 2011

Curvas de Jordan no Toro


Nosso amigo stick, apresentado na postagem anterior,  aprendeu em seu livro de topologia o que são curvas simples e fechadas (ou simplesmente curvas de Jordan)




Além disso, ele aprendeu que uma vez traçada uma curva de Jordan C sobre a esfera, os pontos da esfera que não estão na curva C podem ser agrupados em duas regiões que satisfazem a seguinte propriedade: os pontos de uma dessas regiões não podem ser ligados a pontos da outra região sem cruzar a curva C. Mais ainda, pontos de uma mesma região podem ser ligados por caminhos contidos na região.



Esse resultado, conhecido como o Teorema da Curva de Jordan, já foi contado e recontado em livros, artigos, blogs, dissertações, vídeos, de modo que é fácil encontrar boas referências sobre o assunto.   Segue um enunciado simplificado do Teorema de Jordan.



"Curvas de Jordan dividem a esfera em dois territórios "



Na figura acima, temos uma curva de Jordan em vermelho e as regiões que compõem o complementar da curva na esfera estão em azul e bege. 

Aplicação do conhecimento adquirido: sempre que o stick deseja se livrar do seu fiel companheiro, porém muito chato, cão stick, ele demarca duas regiões traçando uma curva de Jordan no solo e sobre a curva levanta uma cerca suficientemente alta.





Convidamos o stick, juntamente com o seu pegajoso cão stick, a visitar um planeta imaginário cuja superfície tem a forma de uma bóia salva-vidas  ou um biscoito do tipo rosquinha (donuts) ou ainda uma câmara de ar de pneu. Já chega, acho que vocês já me entenderam! De toda forma, vejam a figura abaixo.



Agora, sobre a superfície do estranho planeta imaginário, doravante chamado de planeta toro, sugerimos ao stick que utilize seus conhecimentos de topologia para isolar o insuportável cão.


Pouco tempo depois de o stick isolar o desagradável cão, como mágica, o enfadonho se junta ao seu dono, demonstrando assim que a intuição adquirida pelo stick não funciona no planeta toro. 



Isso mesmo, na sua primeira tentativa de traçar sobre o planeta toro uma curva Jordan e sobre essa curva levantar uma cerca suficientemente alta para isolar o cínico cão, o stick descobriu que existem curvas de Jordan no planeta toro cujos pontos de seu  complementar sempre podem ser conectados por um caminho que não cruza a curva de Jordan. 

Veja abaixo a trajetória (em azul) percorrida pelo cão para se juntar ao seu dono sem cruzar a cerca levantada sobre a curva de Jordan (em vermelho)



Problema. Descrever um algoritmo tal que sempre que o stick traçar uma curva de Jordan sobre a superfície do planeta toro ele possa decidir se a tal curva divide o toro em dois territórios.



Na próxima postagem, espero apresentar uma solução razoável para o problema acima. Enquanto isso, convido vocês a uma discussão sobre a solução desse problema. A área de comentários está de portas abertas!



terça-feira, 11 de outubro de 2011

Um stick de passadas racionais

"Entre dois números reais sempre existe um número racional".

Usaremos um pacato stick domesticado para provar esse teorema.




Colocaremos um par qualquer de números reais sobre pontos de uma reta e provaremos que entre esse par de pontos há um número racional. O stick comprovará o teorema com passadas a partir do número sobre a reta.

Iniciamos a nossa demonstração considerando um par de números reais . Convidamos o stick a se posicionar sobre o ponto da reta real (à esquerda do ponto ).

Estendemos sobre o intervalo um tapete vermelho.

Escolhemos um número inteiro maior do que . Nesse momento, utilizamos a nossa condição de criador do stick para gentilmente convidá-lo a andar na direção positiva da reta com passadas de mesmo tamanho .



Como o stick anda com passadas de tamanho fixo, existe um inteiro positivo de sorte que na -ésima passada o stick estará à direita do tapete vermelho.




Desde que as passadas do stick são uniformes de tamanho menor do que o comprimento do tapete vermelho, ele não poderá saltar o tapete para se posicionar à direita do tapete vermelho, ou seja, existe um inteiro de sorte que na -ésima passada o stick estará sobre o tapete vermelho.



Por outro lado, na -ésima passada o stick estará sobre o ponto racional . Juntando as duas últimas conclusões, provamos que o número racional está entre e .

Para finalizar, vale observar que no caso nada precisa ser demonstrado e, no caso , sugiro que você escolha um stick que esteja disposto a andar no sentido negativo da reta.